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Perspectivas

Aqui no blog, além de contarmos coisas sobre a Eita Editora, a gente também vai publicar textos que as pessoas mandarem e a gente curtir! Quer enviar o seu? eitaeditora@gmail.com ;) Esse primeiro é da Débora Kelly e foi escrito já durante a quarentena. Se vocês gostarem, mandem um salve, uma curtida, um "quero mais!". Boa leitura! Perspectiva De Débora Kelly Ela está estranha. Chegou do trabalho e mal falou comigo. Direto para o banho. Esperei pacientemente para o caso de querer conversar depois.


Não quis.


Sentou em frente à televisão. Mudava os canais pulando de um noticiário para outro. Estava tão preocupado com ela que mal atentei para o conteúdo.


Cansou dos telejornais e passou ao celular. Parecia buscar desesperadamente uma resposta que, por sinal, ainda não tinha em rede alguma.


Tentei me aproximar e a resposta foi um sonoro:


– Hoje não!


Bom, vou esperar o tempo dela. Talvez esteja cansada, nada além disso. Talvez amanhã melhore, vai saber. Mas não sei. Tem algo aí.


Esta noite dormi no sofá para deixá-la à vontade. Ao acordar, percebi que não saiu para o trabalho. Se está em casa é porque o caso é sério mesmo.


Entro em estado de alerta.


Insisto para que diga alguma coisa. Ganho um abraço forte. Ela chora e conta que está assustada. Com tudo. Tudo o que tem acontecido. Esse vírus que está mudando a vida de todo mundo, a crise de ansiedade que gerou nela e a dificuldade de, mesmo que pudesse, sair de casa. Ela repete mais de uma vez que não, não conseguiria sair de casa. E vem mais. Muito mais. Despejando sobre mim o que represou na noite anterior. Fico perdido na maioria dos tópicos. Não consigo compreender. A velocidade da fala e a desconexão de ideias. Tudo bem. Apenas deixo que desabafe, sei precisa disso e ambos de paciência maior do que o normal.


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Os dias transcorrem dentro do que seria o normal, mesmo sem tirar o pijama e o corpo levantar da cama para um copo de água, se tanto. Não quero forçar a barra, mas ela precisa reagir. Perto da coberta, tento um carinho. Ela vira para o outro lado. Uma angústia toma conta de mim. Sei que nossa relação sempre foi assim, só que também existo e tenho minhas necessidades, minhas urgências. Agora sou eu quem começa a falar desesperadamente. Sem escapatória, também vai ter que ouvir. Não vou parar. Não vou desistir.


Ela, finalmente, entende:


– Você não vai me deixar em paz enquanto eu não levantar, não é? Você venceu. Vamos!


Respiro aliviado e também ansioso. Começo a andar de um lado para o outro. Sinto falta da minha antiga rotina.


Ela está pronta, com a cara péssima. Até que enfim de roupa e penteada.


Saímos lado a lado. Que ânimo! Sorrio, quero correr! Ela, porém, se arrasta, assustada, me puxando para perto. Sinto seu corpo tremer, coração disparado. Acabo arrependido de tê-la pressionado. Olho no fundo dos seus olhos pedindo desculpas. Ela entende na hora, dá meia volta e entramos na casa novamente.


Ela corre para o quarto, fecha a porta atrás de si. Fico ali parado sem saber o que fazer, ouço o choro.


Na janela bate o céu alaranjado. Nas sacadas do prédio em frente, um monte de gente, atrás das telas de proteção, fotografa o pôr-do-sol. Isso me parece um apelo à liberdade ou a retomada da valorização das coisas simples, gratuitas e cotidianas. O mundo parece estar mudando.

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Pouca coisa muda nos dias que se sucedem: noites insones, tardes arrastadas, comida congelada, biscoitos, desânimo e olhos inchados. Será que ela não enxerga que o vírus pode até não matá-la, mas ela pode, sim, fazer isso consigo mesma?

Também não me sinto bem. Passo os dias deitado e sem apetite. O que está me atingindo? O estado dela? Uma doença? O tempo que não para mesmo quando o tudo parou?

Sei que não posso preocupá-la neste momento. Faço o possível para que não perceba que por aqui algo também não vai bem.

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Deus ouviu minhas preces! Ela começou a fazer terapia à distância! Hoje abriu as cortinas e ficou mais ativa pelos outros cômodos. Conversou mais comigo, foi carinhosa, sorrimos juntos.

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Acordo com o barulho de música. Estranho. Nunca ouvi esse ritmo por aqui. Assusto mais ainda com ela fazendo exercícios. Todo esse tempo juntos e é a primeira vez que isso acontece. Que bom!

Acho que já não ia bem há muito tempo, foi preciso ficar presa consigo mesma, enfrentar seus próprios monstros, chegar ao fundo do poço para se reerguer.

Mais tarde, ela me chama para sair. Vamos ao mercado para comprar frutas e legumes, além de sorvete e chocolate. Depois de anos lá está ela cozinhando. Algo bobo, trivial. No entanto, grandes avanços que me deixam mais leve.

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Depois de dias bons assim, vejo o quanto melhorou. Lembro a época de quando nos conhecemos. Fico nostálgico, vem tudo o que vivemos juntos. Começo a sentir saudades. Sei que o nosso tempo está chegando ao fim. Talvez acabe antes da pandemia.

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Hoje sou eu quem não consegue sair da cama, pois me sinto triste e com medo. Ao mesmo tempo, aliviado por ela estar bem, por ter feito o melhor que pude enquanto estivemos juntos. Sim, sem dúvida alguma. Ela foi e sempre será o meu grande amor. Agora que está de pé, não quero ser um peso, preciso ir. Sinto que fui importante quando mais precisou, posso partir.

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– O que você tem? Sinto o desespero na voz, já não entendo muito bem o que diz. Quero descansar, só que algo me mantém desperto.

Ela me pega em seus braços com esforço e não solta nem quando entramos no carro. Não sei para onde vamos, não tenho condições de raciocinar.

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Ouço alguém dizer que não há mais nada a se fazer. Abro os olhos pela última vez e percebo as paredes claras, as luzes fortes e o rosto banhado em lágrimas:

– Você... Eu... Sempre vou te amar... Nós... Me perdoa... Você foi mais que um cachorro... Você é a minha alma gêmea... Pode ir... Vai... Vai, meu amor...

Sinto cada palavra encher meu coração de paz, consigo fechar os olhos e descansar tranquilo.

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Sei que ela está pronta para recomeçar, espero que a Terra também, porque a morte não espera. Tampouco a vida.


(Em homenagem à parceria de Raul e Dolores)



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